No dia 19 de setembro, a Corte Internacional de Justiça, principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, divulgou a declaração de intervenção submetida pelo Brasil no processo que move a África do Sul contra Israel. O caso trata de supostas violações, por parte de Israel, de obrigações assumidas no âmbito da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, da qual 153 países são partes, incluindo África do Sul, Israel e Brasil.
Apesar de já ter participado de procedimentos consultivos, incluindo a recente opinião consultiva que tratou de ações de Israel em territórios palestinos, esta é a primeira vez que o Brasil intervém em um caso contencioso, ou seja, em um litígio entre Estados. O Brasil passa, com essa iniciativa, a integrar uma lista de países que pretendem intervir no processo, incluindo países latino-americanos como Cuba, Colômbia, México, Chile e Bolívia. Outros países têm até janeiro de 2026 para protocolar intervenções no caso. Em seguida, cabe a Israel apresentar sua defesa escrita.
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O governo brasileiro decidiu aderir à ação sul-africana em julho, sob a justificativa de que a medida contribui para a interpretação uniformizada da Convenção e sua efetiva implementação. A iniciativa se insere em um contexto de agravamento das ações militares de Israel contra a Faixa de Gaza e de endurecimento da retórica brasileira, que passou a criticar de forma mais contundente as ações de Israel. A decisão de intervir eleva o nível do engajamento diplomático brasileiro com a questão e reflete a adoção de uma politique juridique éxtérieur que concebe a jurisdição internacional como meio adequado para, por meio da gramática do direito internacional, traduzir os anseios de sua política externa.
A declaração brasileira baseia-se no artigo 63 do Estatuto da Corte, que concede a um Estado parte de uma convenção o direito de intervir quando a interpretação de seus termos está sob discussão em caso contencioso. Os intervenientes não se unem formalmente a uma parte, limitando-se a apresentar sua posição sobre as normas internacionais em discussão. No entanto, ao intervir, o Brasil ficará juridicamente vinculado à interpretação que a Corte conferir à Convenção sobre Genocídio por força da parte final do artigo 63(2) do Estatuto.
A manifestação brasileira, de trinta e três páginas, não se propõe a trazer elementos probatórios nem fáticos sobre a conduta das partes – vedação que a própria Corte reconhece[1] –, mas, sim, a prover insumos para a interpretação que a Corte fará da Convenção. Não obstante, embora o documento não condene diretamente as ações de Israel, ele se alinha ao tom crítico dos demais pedidos de intervenção e, com frequência, utiliza exemplos ou interpreta condutas israelenses à luz de sua própria leitura da Convenção.
A maior parte da submissão é dedicada à conceituação do crime de genocídio, sobretudo os artigos I, II e III da Convenção, com foco especial na qualificação do dolo especial (mens rea). A discussão insere-se no histórico de engajamento da Corte com a Convenção sobre Genocídio, sobretudo os casos que decorreram da guerra da Bósnia, para os quais a Corte estabeleceu alto limiar para a comprovação do elemento subjetivo do crime[2]. Ao citar recorrentemente as decisões de mérito desses casos, a submissão brasileira buscou dialogar com as dificuldades probatórias enfrentadas à época[3].
O Brasil ressalta que a Corte já reconheceu a possibilidade de comprovar o dolo especial de forma indireta, por inferência, desde que seja a “única inferência razoável” baseada nas provas do caso. Essa intenção pode ser provada por padrões de conduta e evidências circunstanciais, e não exige que a intenção de praticar genocídio seja a única intenção por trás de determinadas ações. Desse modo, quando múltiplos órgãos estatais ou indivíduos agindo em nome do Estado exibem um padrão de conduta consistente, tal fato permite inferir a existência de uma política governamental voltada à perpetração do genocídio.
A manifestação brasileira contesta, nesse ponto, a defesa recorrente de que os ataques em Gaza visam apenas a destruir o Hamas e resgatar reféns, e que as mortes de civis seriam efeitos colaterais. O Brasil argumenta que basta haver evidências de que a intenção de cometer genocídio está presente, mesmo que coexistindo com outros objetivos. Além disso, a declaração refuta o argumento de autodefesa de Israel, sustentando que as ações defensivas não são direcionadas a um Estado e não atentam à proporcionalidade, requisitos do direito de legítima defesa conforme o artigo 51 da Carta da ONU. O Brasil também enfatiza que imperativos de segurança doméstica não podem ser utilizados como justificativa para a violação do direito internacional humanitário.
O documento também dedica atenção ao crime autônomo de incitação ao cometimento de genocídio, cuja prática tem sido atribuída a autoridades públicas israelenses. A contribuição brasileira defende que a recorrência de certas práticas discursivas – retórica inflamada, referências bíblicas e o uso de linguagem desumanizante – podem refletir o dolo necessário ao crime de incitação e gerar responsabilização internacional do Estado. Argumenta-se, ademais, que a configuração do crime de incitação não depende da existência de um plano ou política sistematizada, nem de seu sucesso.
A intervenção do Brasil é um passo positivo e coerente com a tradição diplomática de um país signatário da maioria das convenções de direitos humanos e que mantém histórico de respeito ao Direito Internacional e ao multilateralismo. Se parece haver margem limitada para mediação formal do Brasil, a intervenção inédita na Corte demonstra que a diplomacia brasileira concebe a jurisdição internacional como um instrumento legítimo e eficaz de sua política externa.
A manifestação reforça, sobretudo, a necessidade de a Corte fundamentar suas conclusões de forma clara, especialmente em relação aos controversos elementos do crime de genocídio. Desse modo, ela poderá redimir-se das críticas recebidas em casos anteriores. Ao realçar a natureza peremptória e erga omnes das normas sob discussão, além da gravidade humanitária da situação, a intervenção brasileira convida a Corte a adotar uma postura firme e decisiva, reforçando sua posição como uma instituição apta a desenvolver o direito internacional e a promover a manutenção de uma ordem mundial baseada em regras.
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[1] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (The Gambia v. Myanmar: 11 States intervening). Ordem de 25 de julho de 2025 (Intervenção de 7 Estados), § 60.
[2] CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Bosnia and Herzegovina v. Serbia and Montenegro). Sentença de 26 de fevereiro de 2007. I.C.J. Reports 2007, p. 43; e CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide (Croatia v. Serbia). Sentença de 3 de fevereiro de 2015. I.C.J. Reports 2015, p. 3.
[3] RAPHAEL SCHÄFER. Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide Case (Croatia v Serbia). In: Max Planck Encyclopedia of Public International Law, 2019, § 14-30.